“Uma poética do discurso filosófico é possível”, afirma o prof. Berel Lang no livro Philosophy and the Art of Writing (1983, 22), publicado pela Bucknell University Press. Não só é possível, segundo Lang, como também é necessária. O autor intentará demonstrar três teses relacionadas entre elas: em primeiro lugar, o discurso filosófico é tanto uma forma de conhecer quanto uma forma de fazer; em segundo, o processo de produção do artefato textual é uma práxis; e, finalmente, o artefato do discurso literário (e também filosófico) tem como condição de inteligibilidade uma personagem, ou voz, ou narrador, que articula a escrita.

A obra de Lang está estruturada em 246 páginas, divididas em 11 capítulos e 3 partes: PART I, Poetics and Philosophical Discourse (Toward a Poetics of Philosophical Discourse; Space, Time, and Philosophical Style; Philosophical Humors; Presentation and Representation in Plato’s Dialogues; Philosophy and the Manners of Art); PART II, Poetics and Persons (Style as Instrument, Style as Person; Points of View: The Authorial Means as Literary Necessity); PART III, Breaking into the Text (Nothing Comes of All: Lear-Dying; The Compleat Solipsist; The Politics and Art of Decency; The Praxis of Criticism).
Na minha leitura, destaco como Lang trata o tema dos géneros em filosofia e como relaciona o fazer filosófico com o fazer artístico. Nesse sentido, no que diz respeito aos géneros, escreve:
“I propose here as a working hypothesis, a four fold generic distinction in philosophical writing among the dialogue, the meditation or essay, the commentary, and the treatise. The abruptness of this schema (why not, after all, the critique, the philosophical poem, the aphorism?) calls attention to the central problem of “genre making” that has already been cited: namely, the selection of categories by which the genres are to be distinguished. The model of literary “action” on which the schema above is based has at least the advantage of simplicity; it presupposes only a model of communication as a transaction among speaker (implied or explicit), audience (again, implied or explicit), and the referent of what is said. In its broadest outline, then, the model assumes only that the philosophical text qualifies as an instance of discourse; the very generality of the model suggests that its terms would have to be taken into account, however the model as a whole might have to be refined“ (P. 29).

O Banquete de Platão
Nos diálogos, o discurso é partilhado pelas diferentes personagens da dramatização. Nesse sentido, o diálogo apresenta uma polifonia de vozes (ou narradores-autores). Além disso, a tensão entre os modos de expressão da apresentação e da representação ativa uma forma de dialética que aproxima o processo da dialética filosófica – não uma apresentação ou uma representação do processo, mas envolvendo o ouvinte ou o leitor dos diálogos no próprio processo.
“- And now, said Socrates, I will ask about Love:—Is Love of something or of nothing?
– Of something, surely, he replied.
– Keep in mind what this is, and tell me what I want to know—whether Love desires that of which love is.
– Yes, surely.
-And does he possess, or does he not possess, that which he loves and desires?
– Probably not, I should say.
– Nay, replied Socrates, I would have you consider whether ‘necessarily’ is not rather the word…”.

Meditações de Descartes
Nas meditações/ensaios (nos quais poderíamos incluir as Memórias, as Confessões e as Autobiografias, segundo Lang), o autor implícito faz uma aparição, geralmente direta (mediante o “eu”). O próprio autor/narrador está aqui como sujeito do texto, não apenas no sentido de que está falando, mas também porque está falando sobre si mesmo; o trabalho tem um fio narrativo do qual ele é um elemento contínuo (talvez até mesmo o elusivo “narreme” procurado por escritores de narrativa).
“SEVERAL years have now elapsed since I first became aware that I had accepted, even from my youth, many false opinions for true, and that consequently what I afterward based on such principles was highly doubtful; and from that time I was convinced of the necessity of undertaking once in my life to rid myself of all the opinions I had adopted, and of commencing anew the work of building from the foundation, if I desired to establish a firm and abiding superstructure in the sciences”.

Tractatus de Wittgenstein
No tratado, o autor implícito, embora presente de um ponto de vista reconhecível e constante, fala de experiência e evidencia que não é necessariamente a sua, mesmo quando usa a primeira pessoa. Sua voz está neutralizada: ele fala não por si mesmo, mas como um observador, recontando descrições ou fatos, os referentes dos quais são totalmente independentes de sua própria existência. Frequentemente os pronomes da primeira pessoa são eliminados completamente em favor de formas impessoais.
“1 The world is all that is the case.
1.1 The world is the totality of facts, not of things.
1.11 The world is determined by the facts, and by their being all the facts.
1.12 For the totality of facts determines what is the case, and also whatever is not the case.
1.13 The facts in logical space are the world.
1.2 The world divides into facts.
1.21 Each item can be the case or not the case while everything else remains the same”.

Comentários de Tomás de Aquino
No comentário, de forma diferente do tratado, existem dois objetos para os quais o autor implícito refere, ou difere: o primeiro, um texto originário; o segundo, o referente daquele texto originário. O autor implícito, portanto, coloca si mesmo em uma posição de subordinação (isso é verdade mesmo quando ele objeta ao texto original). Os aforismos, os diálogos e as meditações não são suceptíveis de serem comentados com facilidade.
“p 493 Second, he describes the philosophers’ opinions about those substances which are not evident. He says that it seems to some philosophers that the limits of bodies are the substances of things, i.e., that surface, line, point and unit are substances to a greater degree than a body or solid. And those who held this opinion differed in their views; because some, the Pythagoreans, thought that no limits of this kind are separate from sensible bodies…”
A distinção servirá a Lang, depois de constatar e referenciar as próprias limitações, para propor o início de uma teoria de gêneros e tropos filosóficos. Nesse sentido, introduz as noções de “autor implícito”, “ponto de vista” e “leitor implícito” para falar de narratologia filosófica e associar esses modelos de relações epistémicas com formas filosóficas textuais. Embora a utilização dos termos apresenta coerência, o facto de Lang não ter presente as teorizações narratológicas sobre autor empírico e autor textual pode embaçar o argumento. Para além disso, Lang afirma que as escolhas do género, do narrador, do ponto de vista, etc., são importantes também em filosofia e condicionam a arquitetura do discurso. Por isso, para o teórico norteamericano, o discurso filosófico é também uma forma de fazer um artefato textual.
“Consider, for example, the following definitions of romance and comedy, abbreviated from Northrop Frye‘s work: romance as a movement of self-assertion and -definition, in which a hero emerges having conquered, and thus having freed himself from, a world of recalcitrant experience, thus the triumph of good over evil; comedy as involving a reconciliation of forces which at first divided (as it turns out, provisionally) groups or individuals in the social or natural world from which comedy sets out. Much more would obviously be needed to support these definitions and the use I make of them – but superficially at least, the distinction between romance and comedy seems exactly to capture an important formal aspect of the difference between Hegel’s Phenomenology and Leibniz’s Monadology: the former, a prototype of the Bildungsroman in which we follow the trials and education of a character named Spirit on its way to victory, as Absolute; the other in which the ostensive differences and varieties of an often harsh experience are reconciled in the even-handed harmony of the “best of all possible worlds.” (Readers have often found the Monadology amusing, and they tend to interpret this as a response to a philosophical oddity; but if what I suggest here is correct, they are amused because the Monadology is funny.)” (p32-33).
No que concerne à comparação entre arte e filosofia, Lang argumenta, ao falar dos processos de validação filosóficos, que, para além das aparências, estes não são julgados como sistemas que podem ser verdadeiros ou falsos. Para o teórico, poucos críticos filosóficos falariam que um sistema está errado. “St. Thomas and Kant refute the ontological argument as it appears in Anselm or Descartes, and somehow all four, the arguments and the refutations, have managed to survive” (p. 106). Isso não significa, para Lang, que em filosofia tudo é possível. O processo de avaliação em filosofia está relacionado ao contexto individual e de emergência daquilo que está sendo avaliado, facto que não torna a avaliação menos rigorosa do que o faria com a aplicação somente de critérios de verdade ou falsidade; significa apenas que não há regras gerais de exclusão e inclusão – e isso novamente aproxima a questão à analogia do processo da arte, onde não encontramos condições suficientes ou necessárias para juízos de aprovação e condenação. Para Lang, as incompatibilidades entre sistemas filosóficos ressaltam apenas a possibilidade de um pluralismo avaliativo. Os métodos filosóficos diferem porque é inevitável que todo sistema filosófico proponha um método diferente. As diferenças então se tornam inevitáveis. O tema filosófico e seu meio também variam. Onde uma estrutura tem limites indefinidos, tudo o que é afirmado sobre ela torna-se parte dos limites. Para o teórico a analogia entre filosofia e arte se sustenta com esses exemplos, uma vez que também para a arte o método e o tema começam com o próprio artista. Pois nem na filosofia nem na arte, a revisão ou recriação contínua do método e do meio produzem dissonância, seja dentro de uma única obra ou em muitas obras. Há espaço, talvez até necessidade, para tal variedade – e dificilmente seria o caso se a única “variedade” legítima disponível para o trabalho da filosofia fossem as alternativas de ser verdadeiro ou falso.
Achei pertinente a argumentação de Lang nesse ponto que me remete às teorias da composição de Edgar A. Poe, Baudelaire, Fernando Pessoa e Paul Valéry, entre outros. Esses escritores reagem contra a teoria da poesia expressiva e dão importância ao processo de produção poético. Poe sentará as bases teóricas nos textos a Filosofia da Composição e o Princípio Poético. Fernando Pessoa leu Poe sob os olhos de Baudelaire, para quem Poe foi o poeta que lhe ensinou a produzir a partir de um marco estético.
Poe: “we should immediately there discover that under the sun there neither exists nor can exist any work more thoroughly dignified, more supremely noble, than this very poem, this poem per se, this poem which is a poem and nothing more, this poem written solely for the poem’s sake” (The Poetic Principle).
Baudelaire: “Digo que, se o poeta buscou uma meta moral, diminuiu sua força poética. E não será imprudente apostar que sua obra será ruim. A poesia não pode, sob pena de desfalecimento ou morte, assemelhar-se à ciência ou à moral; ela não tem a verdade por objeto, tem a si mesma” (prefácio do Baudelaire a Edgar Allan Poe).
Valéry: “Every time I have worked as a poet, I have noticed that my work exacted of me not only that presence of the poetic universe I have spoken of, but many reflections, decisions, choices, and combinations, without which all possible gifts of the Muses, or of Chance, would have remained like precious materials in a workshop without an architect” (Poetry and abstract thought).
Em linhas gerais, a obra de Lang oferece um grande marco para poder pensar a relação entre literatura e pensamento no que diz respeito à escrita filosófica. Nesse caso, ao estudar qual é a arquitetura do texto filosófico. Os esforços estão dirigidos a criar uma teoria de géneros e tropos filosóficos e a pôr em paralelo práxis e poiesis filosófica e artística. Nesse sentido, equiparar a forma de validação da arte com a da filosofia pode ajudar a problematizar e compreender as discrepâncias dentro de uma obra e entre diferentes obras. Dito de outro modo, da mesma forma que para entender e valorar uma obra de arte (sobretudo contemporânea) devemos inseri-la no contexto discursivo do autor, a obra filosófica só pode ser avaliada se contextualizada no discurso que lhe dá a luz, não com base a critérios de verdade ou falsidade.
A obra de Lang é de 1983 e supõe, como dito, um excelente ponto de partida para a reflexão. Falta, a meu ver, porém, uma reflexão sobre a materialidade do suporte de escrita, que também condiciona a forma em que se estrutura o pensamento e que poderíamos incluir na segunda tese que tenta demonstar Lang, a saber, que a produção do artefato textual é uma práxis. O suporte material em que se fizeram e se transmitiram as obras de Platão, de Santo Tomás, de Descartes, de Wittgenstein, etc., difere. A tecnologia, as formas de representação da realidade e de transmissão do conhecimento condicionam a escrita e a forma que temos de pensá-la. Aí podíamos abrir o debate para novas formas de expressão do pensamento veiculadas pelas novas tecnologias e que podem não encaixar na divisão de géneros proposta por Lang.