Breves trechos sobre pensamento enquanto heterogênese

“O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos. Mas a filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência, que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a ação de personagens conceituais. A ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para ganhar a referência: ela traça um plano de coordenadas somente indefinidas, que define sempre estados de coisas, funções ou proposições referenciais, sob a ação de observadores parciais. A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas. Damisch analisou precisamente o quadro de Klee, “Igual infinito”. Certamente não é uma alegoria, mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura. Parece-nos que as manchas castanhas, que dançam na margem e atravessam a tela, são a passagem infinita do caos; o formigar de pontos sobre a tela, dividida por bastonetes, é a sensação composta finita, mas se abre sobre o plano de composição que nos devolve o infinito, = ∞. Isso não implica, contudo, que a arte seja como uma síntese da ciência e da filosofia, da via finita e da via infinita. As três vias são específicas, tão diretas umas como as outras, e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa. Pensar é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais sinteticamente “pensado” (Deleuze e Guattari, O Que é Filosofia?).

“Os três pensamentos se cruzam, se entrelaçam, mas sem síntese nem identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos com seus conceitos, a arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência constrói estados de coisas com suas funções. Um rico tecido de correspondências pode estabelecer-se entre os planos. Mas a rede tem seus pontos culminantes, onde a sensação se torna ela própria sensação de conceito, ou de função: o conceito, conceito de função ou de sensação; a função, função de sensação ou de conceito. E um dos elementos não aparece, sem que o outro possa estar ainda por vir, ainda indeterminado ou desconhecido.Cada elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos, que restam por criar sobre outros planos: o pensamento como heterogênese. É verdade que estes pontos culminantes comportam dois perigos extremos : ou reconduzir-nos à opinião da qual queríamos sair, ou nos precipitar no caos que queríamos enfrentar” (Deleuze e Guattari, O Que é Filosofia?).

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, ideias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos. São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem. São velocidades infinitas, que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem, sem natureza nem pensamento. É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo. Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas ideias” (Deleuze e Guattari, O Que é Filosofia?).

“A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo o mais é sistema e arredores. Baste-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.
Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite para que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca
num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela não tem senão pó?
Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos deuses, e assim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede.

Umas vezes o próprio ritmo da frase exigirá Deus e não Deuses; outras vezes, impor-se-ão as duas sílabas de Deuses, e mudo verbalmente de universo; outras vezes pesarão, ao contrário, as necessidades de uma rima íntima, um deslocamento do ritmo, um sobressalto de emoção, e o politeísmo ou o monoteísmo amolda-se e prefere-se. Os Deuses são uma função do estilo” (Pessoa, Livro do Desassossego, https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr194/inter/Fr194_WIT_ED_CRIT_Z).

“Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver.
Tudo isso nós perdemos, de todas essas consolações nascemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma religião que a representa: passar para outras religiões é perder essa, e por fim perdê-las a todas.
Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficámos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objecto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontrámo-nos navegando, sem a ideia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso…”
(Pessoa, Livro do Desassossego, https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr194/inter/Fr367_WIT_ED_CRIT_Z).

“Escrevo com uma estranha mágoa, servo de uma sufocação intelectual, que me vem da perfeição da tarde. Este céu de azul precioso, desmaiando para tons de cor-de-rosa pálido sob uma brisa igual e branda, dá-me à consciência de mim uma vontade de eu gritar. Estou escrevendo, afinal, por fuga e refúgio. Evito as ideias. Esqueço as expressões exactas, e elas abrilham-se-me no acto físico de escrever, como se a mesma pena as produzisse” (Pessoa, Livro do Desassossego, https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr194/inter/Fr491_WIT_ED_CRIT_Z).

https://ldod.uc.pt/fragments/fragment/Fr598/inter/Fr598_WIT_MS_Fr598a_000

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