Escreve Steiner em A Poesia do Pensamento: “Sempre que a filosofia e a literatura se enfrentam, os elementos da polémica [Platão contra os poetas] voltam a aflorar” (p. 58). A frase faz referência ao Livro X da República, onde Platão esgrime as causas do banimento dos poetas da pólis ideal. Composta por 10 livros, a obra do filósofo oferece uma reflexão sobre a justiça que aborda a organização da cidade-estado ideal. Para Platão, a pólis deve estar estruturada hierarquicamente em três classes: uma classe inferior de artífices ou obreiros; uma intermediária de guerreiros e uma superior de dirigentes com um filósofo rei. Na cidade ideal, não há cabimento para artistas: o pintor, o escultor e o poeta estão afastados três degraus da verdade, segundo o filósofo da Academia. Na República, a mimésis é considerada como um divertimento através do qual o artista reproduz a aparência – não a verdade profunda – das coisas e dos seres. O primeiro criador é Deus (Demiurgo), que criou a ideia de leito. O segundo criador é o artífice que criou um leito sensível (fenoménico), e o terceiro é o artista que representa o leito sensível.
“Do ponto de vista ‘moderno’, que encara a poesia como simples literatura, é difícil de compreender esta exigência, que parece uma ordem tirânica, uma usurpação de direitos alheios. Mas à luz da concepção grega da poesia como representante principal de toda a paideia, o debate no momento em que e Filosofia ganha consciência de si própria como paideia e por sua vez reivindicada para si o primado da educação”, (Jaeger, Paideia, p. 980).
Se temos em conta as análises de Jean-Pierre Vernant e de Adorno e Horkheimer, em As Origens do Pensamento Grego e na Dialéctica do Esclarecimento, a premissa de base é que os mitos, as Teogonias e Cosmogonias serviam como meio de dominação e de estabelecimento de certa hierarquia de poder. É neste contexto que se deve contextualizar a crítica de Platão à poesia, que, como bem ressalta Jaeger, aos nossos olhos, parece tirânica. A meu ver, o problema da proposta platónica está em não contemplar a poesia como outra forma de acesso à verdade, seja isto o que for. Mas também poderíamos afirmar que, naquele contexto e dentro da narrativa platónica, talvez não havia outra hipótese. Mas, em qualquer caso, devemos ter presente que a crítica que faz Platão à poesia não é à poesia tal e como a entendemos hoje em dia.
“Las teogonías y las cosmogonías griegas comprenden, como las cosmogonías que les han sucedido, relatos de génesis que explican la aparición progresiva de un mundo ordenado. Pero son, también y ante todo, otra cosa: mitos de soberanía. Exaltan el poder de un dios que reina sobre todo el universo; hablan de su nacimiento, sus luchas, su triunfo. En todos los dominios -natural, social y ritual-, el orden es el producto de esa victoria del dios soberano. Si el mundo ya no está librado a la inestabilidad ya la confusión, es porque al término de los combates que el dios ha tenido que sostener contra rivales y monstruos, su supremacía aparece definitivamente asegurada, sin que nada pueda en adelante ponerla en cuestión”, Los orígenes del pensamiento griego, (p. 121).
A luta de Platão se dá no contexto da educação. O filósofo quer que seja a filosofia quem eduque Grécia para evitar os perigos da sofística. Segundo Jaeger: “Platão compara a poeisa a um velho amor, que não logramos vencer, mesmo quando chegamos a considerá-lo nocivo e com o qual por fim rompemos violentamente. Desejaríamos ser amáveis para ele e que, nesta prova, se mostrasse o melhor e o mais verdadeiro possível. Mas, se realmente não consegue justificar-se, acabamos por nos escudar com aquele sóbrio conhecimento a que chegamos e que usamos como fórmula encantatória para nos armarmos contra a velha magia. E assim dizemos para nós mesmos que a poesia deste tipo nunca deve ser tomada a sério, mas devemos estar prevenidos contra ela, pelo receio de que ela destrua o ‘Estado dentro de nós’. É única e exclusivamente pelo grau em que ela sabe aproximar a alma desta forma interior que se mede o valor educativo da poesia”, (Paideia, p. 988-989). Da mesma forma em que Derrida fala do pharmakon para se referir ao misto de veneno e remédio que supõe a escrita em Platão (veneno porque aniquila a presença do autor e remédio porque perpetua sua memória), a poesia funciona como um misto de remédio e veneno também: “Seja como for, apesar de toda a sua ambivalência, Platão não podia esquivar o seu próprio génio literário. Não podia eliminar dos seus diálogos a linguagem carregada de mitos, a natureza dramática da sua composição. Nenhuma outra filosofia é mais integralmente literatura. O próprio Platão foi um e outro dos dois artistas ‘rivais’”, (Steiner, A Poesia do Pensamento, p. 63).