“Toda escrita é uma combinação do que você quer fazer e do que não pode fazer”
Por volta de 2009, escrevi a Sergio Chejfec perguntando se podia entrevistá-lo para a Revista de Letras, com motivo da publicação do romance Mis dos mundos. Ele me respondeu com muita gentileza e me pediu que lhe enviasse as perguntas para começar assim um diálogo em base a elas. Foi muito generoso. A notícia da morte do escritor deixou a todos os seus leitores devastados. Em homenagem a ele, traduzi para o português parte das respostas que ofereceu naquela entrevista.
Sobre literatura, escrita e realidade
O mundo já não surpreende, nem na sua suposta majestade nem nos seus avanços equívocos, para não falar das verdades concretas, flagrantemente evidentes e deliberadamente ocultas ao mesmo tempo. Como o mundo não tem mais surpresas, acredito que meu dever, modestamente, é dificultar um pouco as coisas. Não para denunciar o que é óbvio e evidente para todos, já que a literatura e a arte em geral foram deixadas de lado como esclarecedoras de consciências, além de alguns mecanismos consoladores e tranquilizadores, que são muito produtivos porque nos fazem acreditar que sendo corretos já estamos em paz com nossa consciência, mas tornar mais complexo o que nos é dado para que recuperemos a experiência de não saber onde estamos e quais perguntas devemos nos fazer ou responder. Como programa político pode ser muito difuso, mas acredito que a literatura está em condições de colocar esse tipo de desafio ético geral, digamos entre filosófico e antropológico, porque ao mesmo tempo precisa se distanciar de outros discursos que estabelecem uma relação mais direta com a chamada realidade e que procuraram proclamar uma leitura dela. Não estou dizendo que a literatura não pode falar sobre a realidade, mas, sim, que temos o direito de suspeitar de sua suposta clarividência.
É comum ouvir que a literatura dialoga com a realidade. Pode ser verdade, mas também é muito vago. Não há nada que não dialogue com a realidade. Se quero ser mais específico, digo que a literatura, antes de tudo, dialoga com a própria literatura. Acredito que cada escritor dedica seus livros a outros escritores; em primeiro lugar aos do passado, aos livros que o marcaram e com os quais se formou, e, em segundo lugar, aos seus pares, com quem tem uma relação dinâmica na medida em que agem como vizinhos, ainda que obviamente não posso conhecer a todos. A questão é que esses diálogos não são necessariamente eruditos ou livrescos, e têm tantos graus de deliberação e estratégias para encobrir ou adornar suas chaves que toda a literatura entendida como atividade discursiva está aí. Quer dizer, a literatura é amorfa e sólida ao mesmo tempo. Tem a solidez do institucional e a falta de forma pré-estabelecida de qualquer arte; e um escritor em algum momento deve escolher entre o que é institucionalizado como convenção ou tendência, e o que é lateral, que não precisa necessariamente ser amorfo e pouco legível. Na minha opinião, a literatura luta para preservar sua ilegibilidade, pois se for completamente legível perde sua eficácia.
Bibliotecas e escritores
Assim, vemos diferentes níveis de relacionamento. Por um lado, está a biblioteca que cada autor tem, quero dizer, a biblioteca de leituras, os livros com os quais ele dialoga, mesmo sem saber, quando escreve e publica. E, por outro, o museu dinâmico que é a vida em geral, dentro do qual a literatura tenta conservar um espaço cada vez menor e por vezes especializado. Quanto à biblioteca, nunca estive muito atento para estabelecer vínculos tangíveis com os autores que admiro. Diria até que os escritores que me interessam não me impactam pelo verbal, mas por uma mistura que tem como resultado o emocional. E a tensão emocional é algo que tento transmitir em meus livros.
Nesse sentido, posso dizer que várias das histórias dos argentinos Juan José Saer ou Antonio di Benedetto me comovem, uma mistura de choque intelectual, estético e emocional, que acredito ser, em última análise, a experiência da beleza. Admiro o controle de ambos sobre seu ponto de vista e, claro, admiro o ponto de vista de ambos. De Saer me sinto mais próximo, porque ele também entendia a narração como uma digressão, embora uma digressão mais controlada e menos derramada em seu próprio absurdo, como pode ser o meu caso.
Sobre Walser, mencionado nas perguntas, não posso dizer muito, além do fato de que para mim ele pertence a essa gama de escritores cujas vidas são mais significativas para nós do que suas obras. Digamos que como escritor ambulante, Walser venha a representar o esgotamento da caminhada como uma experiência cultural básica da modernidade, pois ele é o caminhante desaforado e descontrolado que escreve em momentos de escrita desaforada e descontrolada. Escrever e andar são dissociados; um e outro são parentes muito distantes, ambos adquiriram uma economia bastante mecânica, com tal azar que são as duas únicas atividades que Walser arrasta intermitentemente. A longa tradição de escritores ambulantes deu o seu melhor, no sentido de construir uma experiência cultural relevante. De Sterne a Borges, passando por Rousseau, Kafka, Benjamin, Pessoa, Handke, Sebald, Joyce etc., ser caminhante parece ser uma condição para ser um escritor superior. É um tema moderno que, como tal, produziu seus próprios lugares-comuns. E me parece que é difícil pregar a caminhada literária se não se tenta fugir delas.
Escrever, caminhar
Hoje a primeira experiência de um passeante acho que está relacionada ao vazio e à repetição. As cidades já não mostram em primeiro lugar o particular e as nuances, mas o ordinário, o generalizado e os contrastes. A segunda experiência tem a ver com estratégias, porque a cidade, seja ela qual for, já é um mero palco para desenvolver um sentido geralmente predeterminado, a menos que se queira escrever um guia de viagem. Assim, enfrentamos, como escritores caminhantes, diferentes tipos de situações, todas relacionadas à experiência da decepção.
Acredito, nesse sentido, que a literatura teria muito a dizer sobre o espaço contemporâneo nas cidades. Por exemplo, poderia refutar a lógica abstrusa dos não lugares, um verdadeiro vestígio do dadaísmo, que na época surgiu como uma experiência celebratória de espaços urbanos esvaziados de conteúdo social, locais que não serviam para nada, onde grupos dadaístas faziam romarias numa espécie de ritual estético, e acabou por estabelecer um culto ambíguo de sítios despersonalizados e transitórios, eventualmente também vazios, esquecendo que agora são pontos onde a maquinaria mercantil se expressa apenas pelo exagero, daí os seus contrastes entre hiperfuncionalidade e desamparo e extrema crueldade. Mas assim sendo, tanto alguns territórios como outros têm diferentes tipos de atores e, sobretudo, têm doentes, geralmente invisíveis para aqueles que celebram não lugares em termos de utopias estéticas urbanas. Portanto, a poetização dos espaços pode ser uma arma de dois gumes. De qualquer forma, não é algo que me preocupe muito, mas funciona como um aviso latente.
Quando começo uma história, não tenho muitas coisas planejadas, porém tenho, como digo, avisos ou precauções. Sou intuitivo, e as precauções são expressas em torno de coisas que acredito ou sei com vários graus de consciência que não consigo fazer muito bem, quer dizer, com resultados dos quais possa me arrepender. Toda escrita é uma combinação do que você quer fazer e do que não pode fazer, em termos de incapacidade. Quando escrevo, sinto-me mais atraído pelas múltiplas reverberações internas da história do que por um avanço em termos de intriga convencional. Porque, como disse antes, me interesso por histórias que se questionam sobre seu status de verdade e até de utilidade. A utilidade é o limite de toda arte, e acredito que a literatura é mais plausível quando parece à primeira vista ser enganosamente inútil, tanto no sentido de ser pouco utilitária quanto tendencialmente malsucedida.
Podem ler o texto em espanhol aqui.
“[No somos más que un conjunto de sucesivas desavenencias con la realidad.] Conquistamos —de una manera más o menos trabajosa— el ceniciento e informe resplandor de las fotografías marcadamente precisas en su falta de nitidez; abigarramos —calentando y enfriando con alternancia nuestros cuerpos— los haces que desde el exterior nos señalan, persistentes e ineludibles, la degradación que se nos avecina y que al mismo tiempo representamos. No hay —realmente— absolutamente lugar para poseer algún cúmulo de seguridades, excepto la de nuestra propia virtualidad y álea que con la intención de perpetuar sólo conseguimos que varíen —indefinidamente— desaviniéndonos en todo momento con la realidad de un modo —aunque gradual— uniforme. No hay absolutamente lugar, y nos acercamos y nos alejamos; pero, no obstante, no hay absolutamente lugar. Comprendemos —con la tierna desesperación que suelen generar las enfermedades mortales— que nuestra materialidad se limita a cierta dimensión de densidad reunida en nosotros de una y no de otra manera, con sus rasgos tan francamente virtuales y ostensibles. Nos coloreamos, al ritmo de sucesivos enfriamientos y calentamientos, con la estela que nuestra conciencia va dejando dentro nuestro y en el mundo; sin darnos cuenta sin embargo —en su ajustada dimensión— de la compulsividad de nuestras percepciones. Como si fagocitásemos —para decirlo de algún modo— todo lo que nosotros mismos somos para no ser otra cosa que una desleída y versátil temperatura. Evaluamos todo lo que nos rodea según nuestras conveniencias e intereses, lo que de cualquier modo no es símbolo de poder alguno sino de nuestro permanente desavenirnos con el mundo y la realidad; a la que, residualmente, vamos depositando en la térmica memoria de nuestros recuerdos sin voluntad pero también sin alegría. Corroboramos —para utilizar una palabra poco precisa— que nosotros mismos somos cuando lanzamos miradas lánguidas a nuestro contorno fotográfico medianamente preciso; y destellan con intermitencia los gránulos de lo que imaginamos que es nuestra figura, sobreimpresa en un mar de desemejanzas. Un torso —decimos— es poco menos que un cuerpo. Y nos cobijamos en la mínima certeza que puede derivar de nuestras precariedades cuando no alcanzamos a observar que la materialidad misma de aquellos desfasajes y desavenencias con el mundo —de nosotros mismos— es en definitiva un reducido espectro de fragmentos”.
Lenta biografía
Sergio Chejfec, nascido a 28 de novembro de 1956 em Buenos Aires, foi um prolífico escritor argentino. Sergio Chejfec faleceu a 2 de abril de 2022 na cidade de Nova York, deixando uma prolifica obra. Sirva este post de homenagem ao seu trabalho. Publicou duas dezenas livros, entre romances, ensaios, contos e uma coleção de poesias, listados a seguir:
Lenta biografía. Buenos Aires: Puntosur, 1990; Moral. Buenos Aires: Puntosur, 1990; El aire. Buenos Aires: Alfaguara, 1992; Cinco. Saint-Nazaire (France): M.E.E.T., 1996; El llamado de la especie. Rosario (Argentina): Beatriz Viterbo, 1997; Los planetas. Buenos Aires: Alfaguara, 1999; Boca de lobo. Buenos Aires: Alfaguara, 2000; Tres poemas y una merced, in Diario de Poesía 62 (2002), Buenos Aires; Gallos y huesos. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2003; Los incompletos. Buenos Aires: Alfaguara, 2004; El punto vacilante. Buenos Aires: Norma, 2005; Baroni: un viaje. Buenos Aires: Alfaguara, 2007; Mis dos mundos. Barcelona: Candaya, 2008; Sobre Giannuzzi. Buenos Aires: bajo la luna, 2010; La experiencia dramática. Buenos Aires: Alfaguara, 2012; Hacia la ciudad eléctrica. La Plata, Argentina: El Broche, 2012; Modo linterna. Buenos Aires: Editorial Entropía, 2013; Últimas noticias de la escritura. Buenos Aires: Editorial Entropía, 2015; Teoría del ascensor. España: Jekyll and Jill, 2016; El visitante. Buenos Aires: Editorial Excursiones, 2017; 5. España: Jekyll and Jill, 2019.





