Albert Lladó: “Um narrador é aquele que transforma informação em experiência”

Por ocasião da publicação de Malpaís nos encontramos online para conversar sobre narração, pensamento e jornalismo

Albert Lladó (Barcelona, 1980) transita entre filosofia, jornalismo, teatro e romance e questiona o momento presente a partir do qual realiza todas essas atividades: Como podemos pensar, informar e narrar hoje? Para responder a essas questões, Lladó publicou diferentes trabalhos: a peça de teatro La mancha (2015), o ensaio La mirada lúcida (2019), o romance La travessia de las anguilas (2020) e recentemente o romance Malpaís (2022).

Malpaís é um romance breve estruturado em 21 capítulos nos quais o narrador, mediante dois personagens principais — Chantal e Felipe Soto —, relata o confronto entre o público e o privado assim como entre a história dos vencedores em confronto com a história dos vencidos no contexto da independência da Catalunha como telão de fundo num futuro 2032. O romance transcende a questão política local para abordar questões como ideologia, ternura, violência, beleza e destruição numa cidade contemporânea assediada pelos condicionantes econômicos que possibilitam, ou impossibilitam, a vida na metrópole. A posição do narrador ganha especial relevância no romance se o analisamos à luz de algumas ideias de Silviano Santiago sobre o narrador pós-moderno: quem narra, o quê se narra e desde onde? Interrogantes aos que podemos acrescentar: hoje, como se informa, como se pensa, como se age?

Graduado em Filosofia (UB), pós-graduado em Jornalismo de Proximidade (UAB) e mestre em Estudos Comparados em Literatura, Arte e Pensamento (UPF), Lladó ministrou diversos cursos, seminários e conferências em instituições espanholas e latino-americanas. Atualmente é professor de Escrita Criativa na Escola d’Escriptura del Ateneu Barcelonès, de Estudos Culturais e Críticos na Escola Massana, e coordena, juntamente com Marina Garcés, a Escola de Pensament del Teatre Lliure. É fundador e editor da Revista de Letras e tem trabalhado em diferentes jornais espanhóis. Por ocasião da publicação de Malpaís nos encontramos online para conversar sobre narração, pensamento e jornalismo.

A filosofia está presente em seu trabalho assim como o jornalismo, a ponto de que, não apenas se complementam, mas, acredito que para uma boa compreensão de sua proposta, também não podem ser analisados isoladamente.

Sim, agora estou trabalhando em um livro de ensaios em que tento entender o porquê dessa prática que parece um pouco dispersa entre jornalismo, filosofia, narrativa e teatro, para além do acidental. Há quem considere esse tipo de cruzamento muito disperso. É verdade que pode ser disperso, mas há um eixo de rotação que é comum a todas essas disciplinas e que tem a ver com percorrer (transitar) uma pergunta. No jornalismo é fácil ver isso de forma literal: a entrevista é o trânsito por uma pergunta. Não é uma pergunta e pronto, muitas vezes é um interrogatório e, portanto, é a busca de uma nuance ou de uma perspetiva. E se levarmos isso para a filosofia, observe esse grande paralelismo: nuance e perspetiva dão voltas de parafuso a essas perguntas. O teatro é também um trânsito pela pergunta. Possivelmente a questão foi pensada na filosofia de forma abstrata e no teatro como uma questão corporificada. A narrativa também é uma pergunta, um romance é uma viagem através de uma pergunta que, como escritor, pode ser descoberta antes ou depois do processo.

Qual é a pergunta que dá origem a Malpaís ou a que o romance tenta responder?

A pergunta inicial era como a política em maiúsculas e a política em minúsculas, a política institucional e as práticas mais cotidianas, convergem ou como criam deslocamentos. Não encontrei uma resposta durante o processo de escrita, mas uma nova pergunta: como se relacionam a ternura e a violência? Que era uma pergunta que não estava no início do trabalho e foi aparecendo insistentemente ao longo da escrita e a despeito do autor.

O que me interessa é como a partir da linguagem confrontamos uma linguagem que se tornou propaganda

É a personagem de Chantal que se faz essa pergunta.

Chantal encarna essa pergunta e, primeiro de forma teórica, porque começa a ler autores que se fazem a mesma pergunta, como Steinbeck. Eu costumo trabalhar com a colagem, no sentido de leituras de leituras. Chantal está lendo Ratos e Homens, do escritor americano que se faz a mesma pergunta. A partir daí, ela, que de um lugar teórico consegue formular a questão, a vivenciará em primeira pessoa. Ela toma consciência de que sua vida é atravessada, como todas as vidas, por ternura e violência. No caso de Chantal, radicalmente e muitas vezes de forma confusa. Essas confusões ou pontos cegos são muito evidentes na propaganda institucional. Na Espanha, a afirmação de que as instituições devem ser instituições de “cuidado” está bem estabelecida. Concordo muito, é um dos ensinamentos mais profundos do feminismo, colocar o “cuidado” no centro. Isso, de tão radical e revolucionário, que o feminismo nos ensinou, resultou em uma linguagem institucional que, se não estivermos atentos, pode facilmente se tornar propaganda. Essas instituições de “cuidado” encerram muita violência sob o guarda-chuva do “cuidado”. O que me interessa é como a partir da linguagem confrontamos uma linguagem que se tornou propaganda. O “cuidado” contém muitas formas de violência, nesse romance vemos através da mãe de Chantal e seu mentor, Cédric. O “cuidado” também tem patologias e descobri isso durante o processo de escrita.

A amizade é uma forma de resistência perante as formas mais sutis de poder

O que exatamente você quer dizer com cuidado? Não é uma questão única do feminismo, pois acho que o que você quer denunciar é a linguagem-propaganda, certo?

O feminismo de cinqüenta anos atrás já nos ensinava que o pessoal também é político. Agora coloca o cuidado no centro. O politiza. Quem atende os mais vulneráveis e cuida deles? Essa questão é essencial para tornar visível o que até agora parecia invisível nos discursos do poder. No entanto, os cuidados não devem ser vistos como algo neutro. Eles também são atravessados pela violência. A propaganda tenta apagar esses rastros menos amigáveis. Há um cuidado que nasce do afeto, da solidariedade, do apoio mútuo. Mas há afetos que também levam ao paternalismo, à chantagem emocional ou mesmo à submissão. Se o íntimo é político, não podemos idealizá-lo. E Chantal descobre a face menos amável do cuidado com relacionamentos profundamente tóxicos, como os que ela tem com a mãe ou com Cédric. Então, quando ela finalmente descobre a amizade, nesse caso com Layla, é revolucionário para ela. A amizade é uma forma de resistência perante as formas mais sutis de poder.

Há no romance uma série de relações com outros textos, de Steinbeck, de Havel, de Camus etc.

Em alguns casos o jogo de colagem é premeditado. Em outros casos, ele aparece durante a escrita. Steinbeck e Chantal não estavam no trabalho prévio da escrita. Sim, havia trabalhado na leitura de Chantal de Santa Juana de Chantal, a freira do século XVII, que atua como um jogo de espelhos consigo mesma. Sobre Václav Havel e Felipe Soto pensei muito nisso, primeiro porque conheço o trabalho de Havel, que me interessa há muito tempo, tanto seu teatro quanto seus discursos. Quis me perguntar sobre as possibilidades e perigos da representação que ele encarna em primeira pessoa. Quando vemos imagens de um congresso de deputados, de um parlamento, de um tribunal, de uma aula, estamos vendo uma performance, uma peça de teatro, e isso não quer dizer que sejam menos verdadeiras, quer dizer que têm outra forma de trabalhar e de validar. Apesar disso, sempre foi como um insulto. A um mau político é-lhe dito, não faça teatro. Quando a realidade é que todos eles fazem teatro. Eles estão representando. Isso tem muitas potencialidades porque podem representar aqueles que não têm voz e também tem muitos perigos, porque a representação sempre envolve uma distância, e essa distância é um desafio em si. Como podemos representar alguém que não podemos encarnar? Eu estava interessado em passar por isso, e Felipe Soto tem sido uma forma de fazê-lo.

O narrador fala no texto de um pensamento lateral e de uma filosofia como ação direta.

Sim, e sobre a ideia de levar filosofia onde não se espera, não apenas na sala de aula de filosofia ou pensamento. Na verdade, é o que a filosofia sempre fez. De Sócrates, que aparece na praça para fazer perguntas incômodas, a qualquer filósofo que queira criar um deslocamento nas questões do momento, para além dos circuitos fechados (uma sala de aula de filosofia ou algum lugar onde se reafirmam preconceitos de grupo).

Salvo engano, você participou de um café de filosofia em uma casa ocupada há alguns anos.

Durante cerca de um ano fui a uma casa ocupada por pessoas que viviam nas ruas. Ocuparam uma casa no centro de Barcelona que fora a antiga casa regional de cultura de Cádiz. Participei ativamente da casa dinamizando um Café Filosófico. Filosofia para moradores de rua que decidiram se unir para construir uma nova casa. Eu queria narrar essa experiência de um lugar diferente e por isso recorri à ficção para fazê-lo. As sessões eram muito poliédricas, havia pessoas com problemas cognitivos, outras com problemas de dependência, outras sem nenhum problema além da pobreza mais absoluta em que se encontravam. Lemos juntos Simone Weil, Nietzsche e começamos a nos fazer perguntas. Algumas destas, sempre sob o signo da ficção, são algumas das questões que compõem Malpaís. Nunca pensei, na época, que algumas dessas experiências pudessem ser um catalisador narrativo. Mas você narra o que não é capaz de compreender plenamente em sua vida. A narrativa trata de criar a ilusão de que, por meio de uma estrutura, é possível capturar a complexidade de um enredo e personagens que, de outra forma, sempre nos escapariam.

Paul De Man afirmou em um artigo que todo texto é autobiográfico pela mesma razão que todo texto não é autobiográfico. Essa questão e a resposta anterior me levam a perguntar sobre a posição do narrador.

A maior dor de cabeça que tive com o romance não foi a construção de personagens ou a criação de atmosferas, tudo isso saiu de forma mais ou menos orgânica, mas o papel que o narrador deveria ocupar é o que mais trabalhei. De facto, até o final ele não é revelado. É um narrador que joga o tempo todo com a ideia de um narrador externo. Na verdade, é um aceno encoberto para A Peste, de Albert Camus, que faz o mesmo até a última página, onde descobrimos quem é o narrador. O que me atraiu foi que Camus coloca o narrador fora e dentro da história e que de certa forma ele pega o que você disse sobre Paul De Man que todo texto é autobiográfico pela mesma razão que todo texto não é.

A questão de como e de onde narramos é uma das questões que mais interessam aos meus alunos de escrita criativa, gera perplexidade.

Se você não quer ser tratado como um autômata, é melhor não se comportar como um

O escritor brasileiro Silviano Santiago, em “O narrador pós-moderno” do livro Nas Malhas das Letras, se pergunta “Quem narra uma história é quem experimenta ou quem a vê? Ou seja: é aquele que narra ações a partir da experiência que tem delas, ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou a ter delas pôr tê-las observado em outro?”

Sim, existem paralelismos. Safranski, falando sobre a ideia de tempo, em uma conferência há dez anos no CCCB, disse uma frase que me marcou e que tem a ver com o que você estava comentando. Ele afirmou algo como “o problema é que agora a informação não se transforma em experiência”. Isso é um desafio, é também um problema para o jornalismo, por exemplo: como transmitir a informação se não somos capazes de transformá-la em experiência? Precisamente para mim, narrador é aquele que transforma informação em experiência. Não importa tanto se essa informação é da testemunha ou do observador, porque, na realidade, uma testemunha também é um observador encarnado.

Até que ponto isso é um problema para o jornalismo também? Faço a pergunta porque, para Benjamin, o jornalismo não é experiência, é informação. Ele é crítico, dessa forma, com a redação da informação. Não sei se entendi sua resposta.

Em um mundo em que muitas de nossas ações e decisões são pré-estabelecidas por um algoritmo, o jornalismo não pode imitar os automatismos dos buscadores de conteúdo. O jornalismo informativo trata o leitor como uma máquina de leitura. E o jornalista é um intermediário. É um ser de mediação. Por isso, sempre com rigor e honestidade, é obrigado a interpretar essa informação para transformá-la em experiência. E também em imaginação (que não é fantasia, que o obrigaria a deixar o factual, algo que ele não pode permitir-se). Pode fazê-lo por meio de ferramentas literárias, também utilizadas pela não-ficção — como diálogos, metáforas, ponto de vista, tom ou mediante o uso de diversos narradores —, ou também pode fazê-lo a partir de uma espécie de hermenêutica dos factos. Se olharmos a realidade como uma partitura, e não a inventarmos, podemos fazer do facto ou da circunstância algo corpóreo, transmissível por meio de palavras ou imagens. Se você não quer ser tratado como um autômata, é melhor não se comportar como um.

O narrador passa por essas tensões às vezes insolúveis entre informação e experiência e entre ver e olhar

Santiago também argumenta que El narrador pós-moderno subtrai a ação narrada e, ao fazê-lo, cria um espaço para que a ficção dramatize a experiência de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de palavra.

Fotografia cedida pelo autor

Perceba que ele fala da dramatização, do teatro que falamos no início, que também é a diferença entre ver e olhar. O narrador é alguém que observa. A palavra teatro é exatamente isso, o lugar de onde você olha. O narrador passa por essas tensões às vezes insolúveis entre informação e experiência e entre ver e olhar. Às vezes nós os confundimos, mas eles não são exatamente iguais. É isso que a narrativa nos oferece. Cito em Malpaís o texto de Benjamin sobre o narrador, e no qual ele distingue o narrador daquele que escreve a notícia como dito anteriormente.

Está trabalhando em algum novo projeto?

Estou trabalhando em um ensaio sobre a diferença entre a atualidade e o presente, que é um tema que me ocupa há muito tempo. Também estou trabalhando em um romance, mas sigo uma estrutura de trabalho em que coleto informações durante nove meses e reservo três meses de verão exclusivamente para escrever. Para fazer experiência de informação. Caso contrário não consigo me concentrar, por realizar várias atividades ao mesmo tempo. Acima de tudo, para a escrita de um romance, que exige muita disciplina, preciso manter um fio narrativo. Escrever um capítulo e voltar a ele em três semanas ou um mês não funciona para mim, é impossível para mim, há algo que morre no processo. Assim, tomo notas, faço esboços e no verão dedico-me a escrever totalmente concentrado no romance.

O trabalho de antes e depois de escrever, ou seja, anotar e depois de escrever, editar e reescrever, posso combinar com outras atividades. Agora a escrita do romance, não. Sou muito rápido na escrita, mas só consigo fazer isso quando não tenho outros trabalhos a fazer.

De facto, ressalta o trabalho sobre o ritmo no romance.

Estou muito preocupado com a musicalidade do texto. Se eu não trabalhar constantemente, ele quebra. Já aconteceu comigo com alguns projetos novos que, uma vez que o ritmo foi quebrado, não pude continuar. O momento da edição também é arriscado. Com o editor, Joan Tarrida, que é um grande editor e um leitor impressionante, tocamos o início e o fim, e houve momentos de descompasso que me preocuparam. Foi quando introduzi alguns dos aforismos, que me ajudaram a usar a interrupção a meu favor. Música e ritmo me preocupam, por isso escrevo romance breve. Porque tem o melhor do conto extenso, que pode ser lido em dois ou três dias, e ao mesmo tempo tem o melhor do romance, em que a personagem pode mudar.

(Revisão do português por Amanda Massaro Moco)

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