Algumas notas sobre deslizamentos textuais no «Livro do Desassossego»

A partir do desafio de pensar o deslizamento enquanto desvio, bifurcação, deslocamento etc., quer teórico, quer textual, pretendi abordar a pós-textualidade filosófica pessoana com a comunicação intitulada “Deslizamentos textuais no Livro do Desassossego

No passado 3 de junho de 2022 realizou-se, no Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a primeira sessão do simpósio intitulado «Deslizamentos e Deslocações», um encontro de pós-doutoramento do Grupo de Investigação «Mediação Digital e Materialidades da Literatura» (MDML) do Centro de Literatura Portuguesa. Foram apresentados resultados de projectos de investigadores associados ao MDML: Eloise Porto, Diego Giménez e Álvaro Seiça. Este encontro pretende dar a conhecer os projectos em curso no âmbito do CLP, designadamente no que se refere aos diversos objectos de estudo e à intersecção entre enquadramentos teóricos e metodológicos. A segunda sessão, a realizar-se no dia 17 (15-17h), contará com a participação de Daniela Côrtes Maduro, Ana Marques e Justin Tonra, investigador visitante da Universidade Nacional da Irlanda, Galway.

© Cartaz de Pedro Brochado

Fundamentado no desafio de pensar o deslizamento como desvio, bifurcação, deslocamento etc., seja teórico ou textual, pretendi abordar a pós-textualidade filosófica pessoana no Livro do Desassossego na comunicação “Deslizamentos textuais no Livro do Desassossego“. A poiesis pessoana, baseada na tradução não linear da tradição junto do sensacionismo, possibilitou ao escritor português escrever teorias que parecem antecipar filosofias contemporâneas. No Livro do Desassossego, encontram-se ecos do pensamento de Heidegger, Benjamin, Wittgenstein, Derrida, Deleuze, entre outros; deslizamentos textuais da modernidade à contemporaneidade. Além disso, busquei mostrar o mapeamento do percurso pós-textual filosófico pessoano mediante a utilização de ferramentas de taxonomização do arquivo LdoD (https://ldod.uc.pt/).

O interesse pela literatura e pensamento provém de minha formação em Filosofia. Com o projecto de investigação estou a realizar um mapeamento das relações filosóficas que contém a obra de Pessoa em três sentidos ou níveis: um primeiro que diz respeito às relações intertextuais que apresenta a obra do poeta, isto é, como estão presentes no livro as leituras filosóficas feitas pelo autor; um segundo que tenta mapear as ligações entre determinados conceitos filosóficos; e um terceiro que analisa a pós-textualidade filosófica, ou seja, a ressonância do texto pessoano nas filosofias contemporâneas.

Um conceito que me tem ajudado a conectar os diferentes sentidos ou níveis é o de rede. Em um nível elementar, podemos entendê-lo, como apontam Mark Newman em Networks e Alexander Galloway e Eugene Thacker em The Exploit: A Theory of Networks, baseando-se, os três autores, na teoria de grafos como a ligação entre uma série finita de pontos (nodes or vertex) com uma série finita de líneas (edges or links).

Jurgen Renn, em The Evolution of Knowledge, afirma que os conceitos de rede têm o potencial para “reconhecer conexões ou paralelismos entre campos até então não relacionados, construindo assim novas pontes entre matemática, ciências e humanidades. Essa perspetiva, junto das capacidades das tecnologias da informação, inclui também novas possibilidades de lidar com os desafios das análises quantitativas e grandes conjuntos de dados nas ciências sociais e humanas. A análise de redes tornou-se um importante instrumento de pesquisa neste contexto, mas deve ser tratada com algum cuidado devido ao risco de borrar distinções conceituais ou perder a profundidade intelectual de outras tradições e abordagens nas humanidades” (p. 303).

A rede intertextual, entendida mediante o ato de leitura como uma rede de relações textuais, leva a pensar que interpretar um texto é traçar as relações entre as leituras nos diferentes níveis textuais. O significado torna-se aquilo que existe entre um texto e todos os outros textos com os quais se relaciona. Uma edição virtual do LdoD com a rede intertextual pode ser consultada aqui. Por sua vez, a rede taxonómica pretende representar as relaciones conceituais ligadas ao sensacionsimo. O estudo com ferramentas de análise textual permite demonstrar como há uma relação estreita entre pensar e sentir. Sentir tudo de todas as maneiras é pensar tudo de todas as maneiras. Uma versão em construção das relações taxonómicas sensacionistas pode ser consultada aqui.

© Diego Giménez

No que concerne à rede pós-textual, pretendo mapear o eco do pensamento contemporâneo na obra de Fernando Pessoa. Como revela a rede intertextual filosófica, o processo omnívoro de leituras filosóficas, entre outras, junto do processo sensacionista que intelectualiza a sensação – conforme vimos na forte relação presente no livro entre pensar e sentir – permitem o poeta efetuar uma tradução não linear da tradição. O processo tradutor discontínuo da tradição, que é explicado por Haroldo de Campos mediante o tropo plagiotrópico, possibilita Pessoa pensar e fazer filosofias que nenhum Kant escreveu.

Por um lado, temos os deslizamentos textuais de Pessoa entre leituras, plagiotropias e sensacionismo, que expandem as possibilidades contrafactuais do pensamento moderno e pós-moderno. Por outro, os deslizamentos textuais dos leitores de Pessoa demonstram as teses de Derrida, McGann e mais recentemente do prof. Portela, sobre a condição textual. Segundo McGann, Derrida já mostrara como as leituras estão estruturadas histórica e filosoficamente como escritas. Ainda de acordo com o autor, cada texto tem variações dele mesmo pedindo para sair ou antíteses esperando se fazer reconhecer. O trabalho com as ferramentas de taxonomização do arquivo evidencia esses vários leitores escondidos nos textos, as marcas de sua presença múltipla estão representadas em diferentes níveis materiais.

© Diego Giménez

Para Portela, “Reading does not extract meaning, it produces meaning”. A intertextualidade é, assim, pensada como uma “rede textual aberta. É produzida por escritos que citam, referem e ecoam outros escritos, também é produzida por processos de leitura que associam textos. A intertextualidade é, em última análise, a condição geral da textualidade como possibilidade de escrita e possibilidade de leitura. A citabilidade, ou seja, o fato de qualquer escrita ser descontextualizável e recontextualizável, pode ser demonstrada através da análise dessas redes textuais abertas e dos protocolos de leitura que as sustentam. Em outras palavras: uma citação é uma evidência material da presença de um texto em outro (um intertexto como ato de escrita), mas também evidência de um processo interpretativo por associação textual (um intertexto como ato de leitura)” (Literary Simulation and the Digital Humanities, p. 85, 2022).

© Diego Giménez

A partir do exposto, o Livro do Desassossego contém diferentes redes textuais. Os protocolos de leitura, enquanto “edges”, ligam os nós e constroem significados. Leituras, sensações, conceitos, escrita e pensamento tecem as redes que constroem o pensamento enquanto heterogénese, que emerge nas interacções entre os múltiplos planos que a obra pessoana possibilita, e que ressoam nas filosofias contemporâneas.

© Diego Giménez

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