Manuel Portela: “O «Arquivo LdoD» é também uma experimentação bastante aberta com o meio digital”

“Não é apenas uma experiência com o Livro do Desassossego ou com as práticas de leitura, edição e escrita”

Literary Simulation and the Digital Humanities (Bloomsbury, 2022), de Manuel Portela, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, compila 10 anos de trabalho no arquivo digital do Livro do Desassossego: Arquivo LdoD. Nesta entrevista, publicada originalmente em espanhol na Revista de Letras, Portela responde a algumas perguntas relacionadas com o arquivo, definido como um simulador da performance literária, que depende dos atos de leitura, escrita e edição.

O livro recolhe 10 anos de trabalho no Arquivo LdoD. O arquivo é descrito, para além de sua função como repositório documental da escrita de Fernando Pessoa, como um ambiente de experimentação que se define como um simulador da performance literária. Poderia falar sobre como surgiu a ideia do simulador e em que medida se distingue de outros arquivos digitais?

Embora não estivesse ainda presente no período de concetualização original, em 2009-2011, a ideia de simulação surgiu praticamente no início do trabalho no projeto, em 2012-2013. O modelo inicial era apenas o de um arquivo digital que representasse a história da construção do Livro do Desassossego como um projeto autoral e como um projeto editorial. Isso implicava representar os documentos autógrafos de Fernando Pessoa e também as 4 edições escolhidas (Prado Coelho, Sobral Cunha, Zenith e Pizarro)  para representar as principais versões editoriais.

Em determinado momento, quando se coloca a questão de modelar a dinâmica da relação entre aquelas duas representações (autoral e editorial) da obra, surge a ideia de virtualizar simulatoriamente esse processo. Ou seja, já não se tratava apenas de representar documentos existentes no arquivo histórico do Livro do Desassossego, mas de modelar o processo a partir do qual uma obra emerge. Essa modelação, na hipótese que depois veio a concretizar-se no Arquivo LdoD, tomou a forma de uma simulação em que os utilizadores são chamados a experimentar atos de leitura, edição e escrita como ações orientadas pela imaginação de um livro em construção. Por outras palavras, o Livro do Desassossego tornou-se num espaço de experimentação literária em sentido amplo.

De que forma se distingue de outros arquivos literários digitais?

De várias formas: a primeira está em desviar a atenção da materialidade do documento para a condicionalidade do documento, isto é, para a performatividade que permite a sua emergência como espaço de inscrição e sentido literário; a segunda está em combinar o que poderíamos descrever como uma metaedição crítica digital bastante exaustiva com uma série de princípios lúdicos de permutação que afetam a leitura, a edição e a escrita; a terceira está em usar o seu espaço de respresentação e simulação para experimentar com múltiplas técnicas e aplicações computacionais (do processamento de linguagem natural às redes sociais) alargando o leque de interações humano-computador e incentivando a presença criativa dos sujeitos dentro do sistema. Geralmente os arquivos digitais tendem a focar-se sobretudo na emulação e transcrição dos documentos. O Arquivo LdoD não é apenas uma experiência com o Livro do Desassossego ou com as práticas de leitura, edição e escrita, é também uma experimentação bastante aberta com o meio digital. Houve duas perguntas que se foram retroalimentando no decurso do projeto: o que é possível fazer com este Livro? O que é possível fazer com este meio?

Porquê a obra de Fernando Pessoa?

A escolha desta obra de Fernando Pessoa tem uma tripla justificação: pelo seu valor literário, uma vez que o Livro do Desassossego é hoje amplamente lido e traduzido, sendo considerada também representativa do modernismo europeu; pela sua natureza inacabada e fragmentária, que a torna particularmente adequada para modelar a escrita, a edição e a leitura como processos; pelo seu caráter modular, isto é, por ser composto por unidades com um forte grau de autonomia, que casa perfeitamente com a lógica modular dos objetos digitais. Se íamos investir muitos milhares de euros num projeto de grande escala, fazia sentido fazê-lo numa obra com grande relevância literária. Se queríamos transcender o horizonte bibliográfico, isto é, imaginar o que se pode fazer computacionalmente com um livro sem tomar a produção de outro livro como horizonte desse trabalho, o texto do Livro do Desassossego tinha as caraterísticas materiais ideiais.  Digamos que o Livro do Desassossego era obra em língua portuguesa em que materialidade textual e materialidade digital poderiam ser exponenciadas.

Que ideias tinha da obra antes de trabalhar no Arquivo LdoD?

Tinha lido a obra integralmente por volta de 1999, na edição de Richard Zenith. A memória que tinha era de um texto de grande intensidade reflexiva e, ao mesmo tempo, de grande intensidade na presentificação das sensações. Para além dessa dimensão imersiva da leitura, tinha também a consciência do problema editorial que a organização do texto representava. A sua natureza fragmentária, ou pelo menos semi-fragmentária, era teoricamente interessante para pensar a passagem de um meio a outro. Quando comecei a estudar os processos de digitalização de obras literárias, por volta de 2000-2001, muito influenciado pelas teorias sociais da edição que valorizavam a singularidade de cada instanciação documental e a variabilidade bibliográfica dos textos, pareceu-me que a obra de Pessoa seria um forte candidato à reorganização segundo princípios hipertextuais que mostrassem a socialização do texto. O hipertexto eletrónico surgia como uma estrutura de organização capaz de acomodar essa variabilidade bibliográfica, que, no caso do Livro do Desassossego, encarnava nas múltiplas edições e nas hipóteses de organização que cada uma delas produzia.

Nas primeiras páginas do livro se pergunta como podemos utilizar a média digital para compreender a leitura, a edição e a escrita e toma como objeto para responder essas perguntas o LdoD. Queria lhe perguntar se, ao invés, o LdoD e Fernando Pessoa podem nos ensinar alguma coisa sobre a média digital.

O processo de remediação funciona, no caso do códice, nos dois sentidos: do livro para o meio digital e do meio digital para o livro. Digamos que o códice foi a máquina cognitiva e de imaginação que os primeiros engenheiros tomaram como modelo quando desenharam as interfaces físicas e gráficas do computador como um metameio capaz de incorporar as tecnologias anteriores de representação. A nível ergonómico e cognitivo, o códice é uma invenção perfeita. Isso significa que muitas estruturas de organização e indexação da informação e de navegação do hipertexto são, de facto, extensões de ideias oriundas do meio livro. Por outro lado, hoje temos muitos livros a serem reconcetualidos e redesenhados sob efeito de estruturas oriundas dos ecrãs, dos programas e das redes digitais. Não teriam sido possíveis sem passarem por esse meio de produção.

Poderíamos dizer, por exemplo, que a reconcetualização do Livro do Desassossego como um espaço material e concetual de permutações é uma consequência da modelação digital que aplicámos à obra de Pessoa. Por outro lado, se pensarmos o Livro do Desassossego enquanto obra escrita em construção, creio que a fragmentariedade como expressão fundamental da produção de sentido é talvez o aspeto que, a partir da materialidade autógrafa do Livro do Desassossego, nos permite imaginar o meio digital. A forma de base de dados que estrutura a informação digital – a partir da qual inúmeras combinatórias e percursos se tornam possíveis – estaria, de certo modo, prefigurada no processo literário de escrita e de organização. O resultado de cada ato de escrita é um módulo variavelmente agregável em unidades de sentido maiores.

Outro dos significantes importantes no seu livro é o de performance, que é utilizada em um sentido concreto, a partir da teorização de materialidade performativa de Johanna Drucker. Distingue essa acepção de outras de performatividade? Pergunto no sentido em que há quem pode entender a performance enquanto ação, e a obra de Pessoa está afastada conceitualmente da ação, por exemplo, no Teatro Estático.

O conceito de performatividade tem uma origem múltipla e tornou-se central nas ciências humanas nas últimas décadas, da linguística dos atos de fala às teorias do sujeito, da semiótica social aos estudos teatrais. Na aceção em que a uso no livro, ela pressupõe a noção de que os processos de produção de sentido são performativos, isto é, implicam ações materiais e simbólicas reiteradas que produzem situações, sujeitos e artefactos como mediadores uns dos outros. Assim, por exemplo, argumento que a performatividade literária depende de atos de escrita, edição e leitura gravitando em torno de um objeto, ao mesmo tempo físico e metafísico, o livro. A performatividade teatral, e das artes do espetáculo em geral, seria apenas uma manifestação estilizada e reificada do princípio geral da performatividade que nos define enquanto seres simbólicos em todas as nossas transações sociais e no espaço mental da subjetivação.

Quando Drucker fala da materialidade performativa está a chamar a atenção para o facto de os textos não serem inertes – a sua forma (narrativa, gráfica, etc.) codifica um conjunto de instruções às quais os leitores respondem criativamente dentro de um conjunto de parâmetros. Da mesma forma, quando Butler fala da performatividade de género está a chamar a atenção para as codificações culturais que masculinizam ou feminizam os sujeitos. O Teatro Estático não seria portanto menos performativo do que o Teatro Dinâmico, já que uma certa forma de inação seria a sua performatividade particular. Aliás, poderíamos ler toda a obra de Pessoa como uma demonstração da performatividade do sujeito. Trata-se de um “sujeito literário”, mas a multiplicação heteronímica poderia ser vista, até certo ponto, como uma demonstração da produção e da autoprodução do sujeito a partir de um conjunto de possibilidades que lhe são oferecidas pela língua. Parte do fascínio da sua escrita é podermos testemunhar a emergência de sujeitos através de uma determinada performance da palavra.

Na página 46 do livro, no último parágrafo, fala de ontologia da produção textual e de epistemologia do conhecimento textual. Poderia comentar um pouco sobre essas duas dimensões e sua coextensionalidade?

As referências “ontologia da produção textual” e “epistemologia do conhecimento textual” surgem no contexto da alusão à noção de performatividade pós-humanista de Karen Barad, com a qual a autora tenta superar o modelo representacionalista da relação entre materialidade e significação. Uma das consequências da ênfase na performatividade é deslocar o foco do problema da correspondência entre descrições e realidade (modelo representacional) para as questões da prática e da ação  (modelo performativo). Esta reconcetualização permite pensar os elementos na sua relacionalidade através de modelos de difração em vez dos modelos de reflexão caraterísticos das teorias representacionais. Ao colocar em causa a distinção ontológica entre as representações e aquilo que elas pretendem representar torna-se evidente a função mediadora das representações e a sua ação enquanto conjunto de práticas discursivas. A “ontologia da produção textual” tal como está modelada no Arquivo LdoD procura dar conta das interferências entre as diferentes ações (ler, editar, escrever) procurando simular essas interferências. Por isso “leitor”, “editor”, “autor” e “livro” são abstraídos como posições variáveis no campo dinâmico de ações em lugar de serem concebidos como entidades pré-constituídas, exteriores umas às outras e independentes do modo como são representadas. A coextensibilidade ontologia-epistemologia dá expressão à função mediadora e performativa da representação. O Arquivo LdoD tenta modelar a natureza emergente da textualidade e da experiência do texto entrelaçando a produção com o conhecimento do texto. 

O trabalho no arquivo o ajudou a repensar também a escrita e a própria noção de textualidade e intertextualidade, chegando a afirmar que a intertextualidade e a condição da textualidade enquanto possibilidade de escrita e possibilidade de leitura. Podemos acrescentar também enquanto possibilidade de pensamento?

Um aspeto curioso que liga a teoria literária e a teoria do hipertexto electrónico reside precisamente no problema das relações entre textos. A palavra “hipertexto” surge nos textos de Ted Nelson, primeiro, e de Gerard Genette, depois, de forma independente e com sentidos distintos. No caso de Genette, “hipertexto” é uma das várias palavras com que tenta sistematizar o problema da relação entre textos – usando-a para referir textos que transformam explicitamente textos anteriores, assimilando-os na sua própria forma.  Já Ted Nelson cunhou a palavra para signifcar a possibilidade de ligar os textos entre si e também para marcar a presença de uns textos noutros. Estas relações seriam, de certo modo, explicitações do princípio geral da intertextualidade como condição textual da escrita e da leitura. O que é interessante não é tanto a possibilidade de marcação de citações, alusões, pastiches e paródias textualmente identificáveis – e que impedem que qualquer texto possa ser considerado autónomo e autossuficiente –, mas sim o facto de as ligações poderem ser produzidas de forma aberta pelos leitores a todo o momento. A intertextualidade define a própria condição textual. A possibilidade de pensamento, no seu aspeto biológico ou biolinguístico, radica na possibilidade de associar sintaticamente e de forma recursiva os elementos da língua. Se quisermos alargar este processo a cadeias mais vastas de ideias e de inferências poderíamos argumentar que também o pensamento opera intertextualmente.

No capítulo “Reading as simulation” fala de protocolos de leitura no sentido de estratégias interpretativas textuais verbalizadas. Podemos estabelecer paralelismos com os protocolos de redes ou computacionais?

A noção de protocolo de leitura tem aceções diferentes na psicologia da leitura e na teoria literária, ambas referidas nesse capítulo. No primeiro caso designa a autodescrição verbal que os indivíduos fazem do modo como executam as suas tarefas. No segundo designa práticas e técnicas partilhadas de interpretação textual. Este último conceito remete para teorias desenvolvidas nas décadas de 1970 e 1980 que sublinharam a natureza ativa e social da leitura como um processo de construção de sentido, opondo-se a uma visão formalista que sobrevalorizava a codificação contida no texto, como se o sentido emergisse apenas das relações entre os elementos textuais. De facto, parece não ser assim que o sentido se constrói. O texto contém um conjunto de parâmetros que cada leitor e cada leitura tem de ativar de forma singular. Essa singularidade, que tem aspetos individuais, é também social e está na base da noção de comunidades interpretativas, que se caraterizariam por partilharem protocolos de leitura.

O paralelismo com os protocolos computacionais – se entendidos como procedimentos programados – não se verifica, na medida em que esses protocolos têm de ser explícitos e produzir sempre os mesmos resultados. A máquina tem de “ler” as instruções sempre da mesma maneira, senão teremos um erro que impede o processamento. Um protocolo de leitura, pelo contrário, pressupõe um espaço de variabilidade e de indeterminabilidade: ainda que possamos encontrar padrões que nos permitem abstrair semelhanças entre práticas interpretativas e que nos permitem referi-las sob a designação de “protocolo”, a leitura mantém-se em aberto, não se esgota num procedimento. Por outro lado, se entendermos protocolos e redes computacionais como procedimentos que codificam as nossas interações através das capacitações da interface e das plataformas, encontraríamos talvez uma semelhança maior. As interfaces, na medida em que constituem injunções para agirmos e interpretarmos de determinado modo as funcionalidades do programa, socializam processos de leitura e estabelecem uma coreografia de práticas.

Um dos desafios que se apresentam a todos os arquivos é a vida que eles podem ter para além da função de repositório, que por si só já justifica sua existência como preservação da memória e identidade cultural. Mas, nesse sentido, como vê a interação do público com o arquivo?

Todos os arquivos são construídos com determinados modelos de interação e determinados modelos de utilizador ou de público. Dada a complexidade do conteúdo e da estrutura dos arquivos literários digitais, muitos deles – os da primeira geração pós-WWW, até à generalização da Web 2.0 – foram concebidos sobretudo para investigadores e estudantes avançados. As interações que pressupõem baseiam-se nas funcionalidades de acesso a uma quantidade vasta informação em diferentes média, visualização de fac-símiles, transcrição de documentos e multiplicação das possibilidades de pesquisa e de ligação entre os materiais. Estes projetos iniciais incidiram sobre autores canónicos, uma parte dos quais se poderiam referir como “grandes autores nacionais” ou “grandes autores mundiais” ou “grandes autores modernos” ou “grandes autores antigos”. Reconhece-se a lógica de reedição do património no meio digital com uma clara função de “preservação da memória e identidade cultural”. Isso terá sido provavelmente um critério que ajudou as agências nacionais de investigação a justificar o financiamento a esses projetos pioneiros.

Já os arquivos produzidos na última década tendem a alargar o seu modelo de utilizador, concebendo funcionalidades de coleção e anotação pessoal através da integração de ferramentas sociais, e simplificando o acesso e a navegação de modo a chegar a um público mais alargado e mais diversificado. Mas o desenho e promoção da interação continuam a ser um problema, uma vez que, para se tornarem parte da experiência de leitura e de manipulação de um público mais amplo, estes arquivos dependem de mediadores que tornem as tarefas de exploração e apropriação mais fáceis. Consciente dessa necessidade de comunicação alargada, o Arquivo LdoD foi concebido para ser usado e manipulado por leigos, estudantes e especialistas com diferentes graus de conhecimento e interesse no Livro do Desassossego. A divisão das interfaces em níveis diferentes de complexidade e com objetivos diferentes mostra esse esforço. Tem conseguido um público bastante alargado, mas a utilização plena das suas funcionalidades dinâmicas e sociais continua a depender de oficinas dirigidas. Quase todos os arquivos literários digitais têm um potencial que permanece subutilizado, mesmo em contexto académico. Esta constatação, que era compreensível há vinte anos quando a edição crítica digital era ainda bastante experimental, é hoje mais difícil de entender, atendendo ao grau de digitalização das sociedades.

O simulador pode ser uma ferramenta muito útil também no ensino de Fernando Pessoa no ensino secundário. Investigadores da equipa têm dado aulas e oficinas a professores. Como foi a experiência?

As experiências das oficinas dirigidas foram bem-sucedidas no que se refere ao feedback dos participantes, seja em relação à compreensão das funcionalidades dinâmicas do arquivo – como construir e anotar edições virtuais –, seja em relação ao seu envolvimento nas tarefas através da exploração das interfaces e das aplicações. Já a tradução dessa aprendizagem dos docentes na transformação do seu trabalho com os estudantes em sala de aula, a nível do ensino secundário, não se verificou. Apesar das diversas tentativas para motivar os docentes a incentivarem o uso do Arquivo LdoD junto dos estudantes, não tenho conhecimento de que isso tenha realmente acontecido. Em grande medida, a resistência prende-se com uma atitude demasiado presa ao manual como suporte da aula e a um guião pedagógico que admite poucas variações. Os docentes parecem não estar dispostos a investir o esforço adicional para experimentar uma nova prática. Dado que o Arquivo LdoD está concebido também para smartphone nem sequer seria preciso acesso a uma sala de aula equipada com computadores. Já no que se refere a oficinas em contexto universitário a experiência tem tido alguma repercussão entre os estudantes, uma vez que participam diretamente nas nossas oficinas. Esta relação entre o Arquivo LdoD como programa teórico e técnico de interação, por um lado, e como prática situada de apropriação e uso, por outro, está a ser estudada por Cecília Magalhães na sua tese Fragmentos em Prática, em fase de conclusão.

Uma das funções que estão a ser desenvolvidas dentro do simulador é a função autor. Poderia nos descrever como funcionará e quando prevê que esteja pronta?

A função autor consiste em abrir os textos à escrita e à reescrita. Digamos que corresponde a simular o processo de escrita, de uma forma paralela ao que acontece com a simulação da edição e a simulação da leitura. Tal como naqueles dois casos, a interface “Escrita” funcionará também com uma lógica lúdica que convida os utilizadores da plataforma a escrever variações partindo de textos do Livro do Desassossego. A regra do jogo é haver uma âncora específica num passo do texto de Pessoa, mas a escala dessa âncora é variável – pode ir da letra e da palavra isolada até um conjunto de palavras e de frases ou mesmo um texto no seu todo. As extensões e variações sobre o texto podem ainda ser feitas de forma exclusivamente manual (escrevendo numa caixa de edição com um processador de texto) ou com recurso a ferramentas automáticas de permutação, geração e transformação textual. Um conjunto de experiências deste tipo foi realizado por Luís Lucas Pereira, entre 2014 e 2018, sob o título Máquinas do Desassossego (http://mofd.dei.uc.pt/). A integração desta funcionalidade vai demorar ainda mais algum tempo, uma vez que o Arquivo LdoD não dispõe neste momento dos recursos para o trabalho de programação necessário.

A função de autor está de certa forma relacionada com a escrita de si. Poderia nos falar dessa relação?

De facto, uma das justificações internas (isto é, derivadas do próprio Livro do Desassossego) para pensar a função autor é a relação dessa função com a subjetividade. Em muitos trechos do Livro, há referências a atos de escrita e, em particular, ao facto de o sujeito da escrita misturar as reflexões que faz com a descrição do momento presente enquanto sensação e perceção. Ao sugerirem essa sincronia entre escrever e sentir, os narradores dos fragmentos do Livro parecem transformar cada ato de escrita numa prótese da consciência de si. Deste modo, a consciência enquanto sentimento de si ganha saliência como se fosse um efeito secundário da escrita. Esta estranha experiência da irrealidade do sujeito, como se fosse uma pós-produção da sua linguagem, é uma das vertigens produzidas pelo Livro. Por vezes, escrever esta consciência de si parece tonar-se no principal conteúdo da escrita ao longo do Livro. De algum modo, a proposta de abrir o texto a novos atos de escrita pretende explorar essa retroação entre escrita e subjetivação.

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