Lisboa, capital do século XIX

Há um lugar comum que se ouve de tanto em tanto em palestras: Portugal entrou tardiamente na modernidade. É habitual evocar imagens da periferia urbana em contraposição com o grande imaginário parisiense ou londrinense. Mas será que foi assim mesmo? Resgato para este site algumas reflexões contidas no texto “Materialidade e Modernidade no Livro do Desassossego1, que pretendem questionar esse lugar comum. O texto completo foi publicado na revista Terra Roxa e Outras Terras: Revista de Estudos Literáriospublicação do PPG em Letras da Universidade Estadual de Londrina:

«No livro Miniature Metropolis (2015), o especialista Andreas Huyssen utiliza o termo “miniatura” para nomear o processo de urbanização da literatura moderna caracterizado pela “forma pequena, que parece ter sido favorecida pelos leitores e espectadores urbanos que procuravam estímulos e um consumo rápido de acordo com a velocidade acelerada da vida moderna” (2015: 21-22). A expressão, como o autor refere, foi cunhada em 1935 por Walter Benjamin, no texto “Paris, the Capital of the Nineteenth Century” (2006: 30-31), que a usa para falar das galerias comerciais ao citar uma guia ilustrada de Paris:

“Essas galerias, uma recente invenção do luxo industrial, têm tetos de vidro e corredores de mármore, passando por blocos completos de prédios, cujos proprietários se reuniram para tais especulações. Alinhadas a ambos lados dos corredores, cuja iluminação vem do alto, exibem-se as lojas mais elegantes, de modo tal que a passagem é uma cidade, um mundo em miniatura”.

Para o alemão, a experiência urbana aflora como novidade na época do fetichismo capital e mercantil. Benjamin pensa a emergência do ferro na arquitetura da modernidade estabelecendo paralelismos, por um lado, com o declive do panorama após a aparição da fotografia, que leva à extinção do pintor de miniaturas não só por questões econômicas, mas também técnicas, relacionadas ao tempo de exposição; por outro lado, com o flâneur na conceptualização de Baudelaire:

“Com Baudelaire, Paris se torna, pela primeira vez, sujeito de poesia lírica. Esta poesia não é um hino à pátria; o olhar do alegorista, ao cair sobre a cidade, é o de um homem alienado. É o olhar do flâneur, cujo modo de vida ainda oculta, sob um ar mitigador, a iminente desolação do habitante da grande cidade. O flâneur ainda encontra-se no umbral da metrópole e da classe média” (Benjamin 2006: 40).

Se com Baudelaire Paris se torna sujeito de poesia lírica, com o Livro do Desassossego o faz Lisboa, que já tinha sido sujeito lírico por meio de Cesário Verde. […]

Arquivo Municipal de Lisboa, Coleção Joshua Benoliel, PT/AMLSB/JBN/000273. Março de 1904. Elevador de Santa Justa. http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt.

Seguindo o caminho de Benjamin, e se tomarmos um exemplo da arquitetura moderna em Portugal, poderíamos nos centrar no Elevador de Santa Justa, no Carmo, construído entre os séculos XIX e XX. Os inquéritos para o projeto de locomoção da zona começaram em 1874. Em 1882, deu-se licença ao arquiteto Raul Mesnier du Ponsard para explorar e construir planos inclinados em Lisboa. A escritura de concessão para a construção do elevador ao arquiteto data do 17 de março do 1900, tal e como consta no Arquivo Municipal de Lisboa, ainda que a licença provisória tenha sido concedida um ano antes. […] Elevador de Santa Justa nasceu municipalmente no século XX, feito do mesmo ferro que se podia encontrar nas galerias de Paris.

“O que no Elevador de Santa Justa é universal é a mecânica facilitando o mundo” (2011: 160), escreve Pessoa no Livro do Desassossego e, na imagem que vemos a seguir, assistimos a uma cena da vida urbana no centro de Lisboa, com o Elevador ao fundo da fotografia, uma torre da modernidade feita para facilitar a vida dos lisboetas. Podemos imaginar Soares deambulando pela cidade estranha “tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual” (Pessoa 2011: 491).

A primeira gravura que copia um daguerreótipo publicada em Portugal é de 1841, do Palácio da Ajuda, e foi publicada no jornal literário O Panorama, no número 203, de 20 de março, dois anos depois do anúncio da invenção do daguerreótipo pelo francês Louis-Jacques Daguerre. Acompanha a imagem reproduzida no jornal um texto que apresenta a novidade como uma espécie de desenho feito por um instrumento recentemente inventado, o daguerreótipo:

“O habitante da cidade, cuja supremacia política sobre as províncias é testemunhada muitas vezes no curso do século, tenta trazer o campo à cidade. Nos panoramas, a cidade abre-se, transformando-se em paisagem, como fará mais tarde, e de forma mais sutil, para os flâneurs. Daguerre é estudante do pintor de panoramas Prévost, cujo estabelecimento encontra-se no Passeio dos Panoramas. […] Em 1839 o Panoramas de Daguerre incendia-se. No mesmo ano, anuncia a invenção do daguerreótipo” (Benjamin 2006: 34).

Disponível na Hemeroteca Municipal de Lisboa: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt

F. Raposo, que assina o artigo, dá conta das dificuldades de passar a fotografia numa madeira para poder ser manipulada no buril e depois reproduzida no jornal. Logo, descreve para os leitores os pormenores da imagem que podiam suscitar certas dúvidas, como o enquadramento do Palácio e as figuras que aparecem obscurecidas por estarem à contraluz, e termina falando da história do palácio. A tecnologia e a consequente popularização da fotografia em detrimento do panorama, como analisou Benjamin (2006: 32), anunciando uma convulsão na relação da arte com a tecnologia, levaram a imagem de clientes individuais ao vulgo. Esse processo teve seu paralelismo na produção literária mediante o folhetim:

“Um início é a arquitetura como construção da engenheira. Logo vem a reprodução da natureza como fotografia. A criação da fantasia prepara-se para tornar-se prática como arte comercial. A literatura se submete à montagem no folhetim. Todos estes produtos estão prontos para entrar no mercado como mercadorias. Mas permanecem no limiar. Desta época derivam as galerias e os interiores, os salões de exibições e os panoramas. São resíduos de um mundo sonhado” (Benjamin 2006: 45).»

Até aqui constam os trechos do texto que pode ser consultado na íntegra na revista Terra Roxa. A seguir, complemento os excertos com o artigo dedicado, na revista O Panorama, à invenção de Daguerre de 1939. O texto foi publicado em 16 de fevereiro de 1839 e segue a ortografia anterior ao acordo ortográfico de 1911. Lisboa estava a par do que acontecia no mundo. Lemos no primeiro parágrafo: “A natureza apparece retratando-se a si mesma, copiando as suas obras assim como as da arte, não em paneis precenciaes, inconstantes e fugitivos, como eram e são os rios, os lagos, as pedras e metaes polidos, mas em materia que retem o simulacro do objecto visivel e o fica repetindo com a mais cabal semelhança ainda depois de ausente”. Segue o texto completo:

REVOLUÇÂO NAS ARTES DO DESENHO.

O INVENTO, ou descubrimento de que vamos fallar, merece um e outro titulo; a natureza e o engenho do homem, podem ahi apostar primasias. A natureza apparece retratando-se a si mesma, copiando as suas obras assim como as da arte, não em paneis precenciaes, inconstantes e fugitivos, como eram e são os rios, os lagos, as pedras e metaes polidos, mas em materia que retem o simulacro do objecto visivel e o fica repetindo com a mais cabal semelhança ainda depois de ausente: isto pelo que toca á natureza. Agora pelo que respeita ao engenho do homem, foi elle quem a forçou a este milagre novo e inesperado. Duas coisas nos dão pena querendo escrever esta noticia: a primeira é que não possamos explica-la e circumstancia-la como cumprira, por fallecerem ainda as precisas e miudas informações; a segunda, que desse mesmo pouco com que um jornal de Paris, o Seculo, nos vem acenando, não nos consente a indole e extensão da nossa folha apresentar senão o poquissimo.
A camara luminosa ou optica, segundo vulgarmente se diz, é formosa recreação de nossa infancia, e nos permite viajar sentados n’uma cadeira, no canto da nossa casa, por todos os portos, cidades, ruinas, bosques e desertos do mundo; mas, se taes pregrinações nos não custam nem fadigas nem perigos, nem dinheiro e largos annos, tambem a idéa que nos trazem das coisas aparatadas é pelo demais incompleta ou falsa; e todos esses quadros de mão humana são imperfeitos como tudo que d’ella sae. A camara luminosa levava grandes ventagens á camara obscura em um sentido, se em outro lhas cedia, porque, se ahi o artista cercado de trevas via descer sobre o seu papel alvo e nú, as formas perfeitas, córadas e viva das coisas externas, e dessas, todas as que lá por fóra senão levavam e fugiam, as prendia com o lapis e pincel, e compunha, ou antes copiava natural e verdadeiro o seu quadro. por outra parte o alcance desta sua magia era sempre mui limitado: e demais, dado que as formas e cores que primitivamente baixavam ao seu papel fossem, nem podessem deixar de ser completas e exactas, como o prendê-las era trabalho de mão e instrumentos humanos; ahi vinham tambem forçosamente as differenças, os erros e quando menos os desprimores. Da camara obscura saíam lindas recordações abreviadas do mundo circumsntante; mas esses paineis que mais eram formulas representativas do que emanações reaes dos corpos; mais retratos levemente desfigurados do que reflexos proprios, inteiros e absolutos, esses paneis, requeriam tempo, paciencia, arte e uso e uma palheta carregada de todas as cores do iris. D’ora ávante porém, sem palheta, nem lapis, sem preceitos artisticos nem dispendio de horas e dias, que digo, sem mover a mão, sem abrir os olhos e ate dormitando, poderá o viajante enriquecer a sua pasta com todos os monumentos, edificios e paizagens das longas terras, e o amante mais hospede nas bellas artes, obter por si mesmo o retrato dos seus amores; tão ao natural como o traz debuchado no coração, e mais natural ainda porque não lhe faltarão as miudesas minimas que a vista não alcança e que só a lente lhe poderia revelar. Os nossos leitores nos estão já aqui pedindo impacientes a solução de tão inerivel problêma; o que podemos é apontar-lha, isso vamos fazer.
Eis aqui o que o senhor Arago relatou á academia franceza de cuja é secretario: o senhor Daguerre, famigerado pintor do diorama, andava, largos annos havia, todo embebido em procurar alguma substancia onde a luz se podesse imprimir, e deixar de si vestigios distinctos, que ainda depois d’ella ausente a denunciassem com todas suas modificações e circumstancias; para este fim andou batendo á porta das viarias materias e interrogando todos os corpos e invocando toda a natureza. Em tudo é a diligencia mãe de boa ventura. Encontrou ao cabo uma substancia como a elle sonhára, tão sensivel á acção immediata da luz, que esta lhe deixa os vestigios evidentes do seu contacto, d’esse contacto tão subtil e inapreciavel. Estes vestigios ficam representados por côres que teem em cada ponto uma relação perfeita com os diversos graus d’intensidade da mesma luz.
Não se cuide, comtudo, haver nesta estampa as proprias côres do objecto que ellas representam; não, as diversas côres dos originaes só são denotadas e significadas na copia, com uma extrema exactidão, pela maior ou menor força da luz, isto é, pelo maior ou menor effeito da impressão da luz: vae do original á copia uma differença a este respeito bem comparavel com a que faz uma gravura optima d’um painel a oleo cujo ella fôr perfeitissimo traslado. O vermelho, o azul, o amarello, o verde etc, são significados por combinações de luz e sombra, por meias tintas mais ou menos claras ou escuras, segundo a somma de potencia clarificante que encerra por sua natureza cada uma destas côres. Mas, o que é certo apesar de todo esse desconto, é, que estas copias são tão extremadas, tem um tal relevo e tamanha verdade como se não pode imaginar sem as ter visto. A delicadesa dos traços, a puresa das fórmas, a exactidão e harmonia dos tons, a perspectiva aeria, o primor das miudesas, isso tudo se representa com a suprema perfeição. A lente, malsim terrivel das melhores obras de desenho, que em todas encontra senões e desares inevitaveis para a arte, gire quanto quizer sobre estas figuras, fite n’ellas, quanto tempo lhe agradar, o seu olho inexoravel, desesperar-se-ha de não descubrir senão perfeições, depois perfeições, e sempre em tudo perfeições. Não ha porque nos espantemos: a luz, a propria luz foi a pintora. Do pae da luz creáram divinidade ás artes os fabuladores da Grecia; da fabula fez historia o engenho mais creador da nossa edade. Estas gravuras abertas pelo buril dos raios luminosos, estas estampas baixadas, porque assim o digamos, do ceu, mostrou-as o senhor Daguerre aos senhores Arago, Biot, Humboldt e outros, que todos ficaram suspensos e enfeitiçados. O acutor limitado n’um pequenino espaço da ponte, chamada das Artes, trasladou toda a carreira de grandiosidades monumentaes que ufanam e affamam a margem direita do Sena, comprehendendo aquella parte do Louvre que alardea a opulenta galleria das pinturas: e não ha linha, não ha ponto que não saísse perfeissimo. Da mesma arte apanhou aquella immensa e gigantesca fabrica de Nossa Senhora de Paris, com todas a sua profusissima cuberta de esculpturas gothicas. Mais fez, que repetiu o prospecto do mesmo edificio, ás oito da manhaã, ao meio dia e ás quatro da tarde, e isto em dois dias diversos, um de chuva, outro de sol; e todas estas vistas, sem exceptuar aquellas mesmas em que a extensão relatica das sombras é identica para quem as observa, teem physionamias tão proprias e tão suas, que n’um relanciar de olhos se adivinha a hora do dia e circumstancias atmpsphericas em que se fez cada retrato. E devendo parecer já isto a maxima maravilha, ainda ha outra e é a quasi magica ligeiresa com que se opera; oito ou dez minutos bastam no clima e ceu ordrinariamente aspero de Paris para começo e remate de taes quadros; mas com ar mais puro e luz mais estreme, como no Egypto, um minuto bastaria. Todavia, dis o noticiador do Seculo, estas admiraveis representações das exterioridades da natureza, certamente por passarem por ellas mãos humanas, carecem do que quer que seja com objectos d’arte. Coisa admiravel! aquellas mesma potencia que as creou parece ausentar-se logo d’ellas: estas obras da luz carecem de luz. Nos proprios pontos mais directamente clareados ha uma fallencia de vivesa e de lustre: e na verdade são umas vistas, que a despeito de todas as harmonias de sua impecavel perfeição, como que apparecem sob um ceu denso e boreal que as está esmorecendo e esfriando: parece que ao coarem-se pelo aparelho optico do auctor, todas á uma se revestem do aspecto melancholico do horizonte quando quer anoitecer.
Segundo contra. A pesar da summa rapidez da luz, como o seu effeito na substancia do Sr. Daguerre não é instantaneo, qualquer objecto que se mova com velocidade ou lhe não deixa vestigios seus, ou só muito confusos. As folhas das arvores por exemplo, como aquellas que sempre se andam balouçando no vento, ficam pelo demais mui perturbadas: mas onde só se pretenderem imagens da natureza sem vida, edificios, monumentos, estatuas, ou cousas de semelhante genero, ahi sim, ahi triunfa de todos os outros este novo methodo. Rosto de homem vivo ainda até hoje o não pode retratar que satisfizesse. Mas o auctor ainda não perdeu a esperança de lá chegar.
É inegavel á vista do que levâmos apontando, que este invento, um dos mais admiraveis de nossos tempos, terá largas consequencias em todas as artes do desenho, e contribuirá não só para o progresso do luxo util e aformoseador da sociedade, mas tambem para o maior aproveitamento das viagens, quer sejam scientificas, ou artisticas, ou moraes, quer de simples divertimentos o recreação. O auctor, porém, ainda não declarou o seu segredo; e esta immensa revolução, para arrebentar e espalhar-se por todo o mundo, só agurada uma palavra d’elle, o seu fiat lux.

Erratas:

1. No artigo da revista Terra Roxa, há uma data que está incorreta: a publicação da gravura a partir do daguerreótipo foi publicada em 20 de março de 1841, não em 25 de dezembro de 1841 como consta no texto. Aquilo que o jornal O Panorama publica não é a fotografia, senão a gravura feita a partir do daguerreótipo.

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